Penitus Ignotus






Acho que essa é a trilha mais apropriada para este post. Deem play antes de ler.



“Olha aqui” –

Escutou vindo de um lugar que sabia que estava vazio.

Um espaço coberto apenas por ar entre ele e a parede.

Paredes não falam.

Não havia ninguém.

Continuou andando.

Podia até ser louco, mas não era burro. Sabia o que estava havendo. Após 19 anos voltara a ouvir vozes. 
“Calma, calma. Não posso ter uma crise aqui.” – Repetia como um mantra. Havia conseguido voltar a seus afazeres corriqueiros. Possuía uma vida.

Enquanto todos almejavam ter algo ímpar em suas vivências, só queria ser mais um. Nem mais, nem menos. Mais um. Um emprego chato. Pegar trânsito. Assistir TV. Férias uma vez ao ano. Mas não, foi agraciado com o dom da loucura, como gostava de chamar.

Devaneios tolos permeavam sua mente, loucos não sabem que são loucos. Portanto, talvez não o fosse. Mas como? Improvável. Pessoas não ouvem vozes, pessoas não veem seres disformes abrindo portas e pessoas não são rasgadas por alucinações. Tocou a cicatriz em seu ventre.

“OLHA AQUI!!” –Gritaram dessa vez.

Um sobressalto e um calafrio. Não iria olhar. Sua cabeça estava quase girando. Já bastava ter a certeza de que não foi um achismo. Realmente havia voltado a escutar vozes. Não queria o resto do pacote. Pra quê? Mudar de cidade de novo. Perder todos que nunca teve. Ser apontado, julgado, execrado e humilhado.

Já era tarde da noite. Só queria chegar a casa. O psicólogo tentara ajudar. Mas só deu nomes ao que sentia. Apenas isso.

Relatos pessoais. 

Pequenas memórias.

"5 de janeiro de 1984 – As aulas ainda não haviam voltado, estava andando pela rua. Eu me lembro de neve, mas talvez esteja errado. Aqui não neva. Entrei em casa e juro que ouvi uma respiração tão alta que me incomodava mais o fato de que ninguém havia acordado com o barulho do que o barulho em si. (Alucinação Auditiva) Vinha do quarto dos meus pais. Abri a porta devagar e nada poderia ter me preparado para essa visão. (Alucinação Hipnagógica) Algo longilíneo, curvado como uma aranha, grande como um armário, não consegui contar os olhos, talvez o fato de estarem girando e apontando para todos os lugares o mais rápido que podiam tenha me afetado. Respirava como uma locomotiva. Parecia acuado, mas grande o bastante para poder arrancar qualquer membro de qualquer pessoa no recinto como se estivesse tirando um pedaço de algodão doce. Gritei, gritei e chorei. Minha mãe me estapeou. Trancou-me no quarto. Não dormi."

"1 de maio de 1985 – Estava assistindo TV. Meus pais já não me levavam a lugar algum. Não queriam passar vergonha. Ouvi um grito estarrecedor vindo do porão. Era agudo, era pontuado e era agoniante. Tão dolorido e alto que não consegui distinguir se era de um homem ou de uma mulher, na verdade supus ser humano. Era um guincho. A certeza que eu tinha é que era de dor. Prostrei-me frente a porta do porão. Senti o cheiro de podre. Algo estava morto ou morrendo lá dentro. Eu tinha certeza. (Alucinação olfativa) Coloquei a mão na maçaneta. Suava e tremia. Os gritos não cessavam. Não abri a porta."

"1 de outubro de 1990 – Sussurravam em meu ouvido durante o sono com certa frequência. Eu não entendia. Mas sempre acordava. Já havia me acostumado a dormir com a luz acesa. Vultos que corriam para o armário ou que saiam do banheiro para encontrar moradia nas sombras da quina na parede não me assustavam como antes. Contanto que não falassem comigo e não fizessem ruído estava tudo bem. Achava que estava aprendendo a conviver com esses fatos. Nesse dia, sussurraram em meu ouvido. Acordei como se pulassem em meu peito. Tudo brilhava e eu via cores que não existiam. Cheiros desconhecidos. E sensações novas. Não era frio, nem calor, nem dor. Mas era ruim (Alucinação Sinestésica) A cama cedeu.  A luz quebrou. O armário caiu no chão. Todos em casa acordaram. Minha mãe me disse que eu já estava gordo e velho e que deveria sair de casa. Que eu estava quebrando tudo. Entendi o que eles sussurravam. 'Você vem.'"

"26 de junho de 1994 – Já havia mudado de cidade três vezes. Especulação imobiliária ou pobreza excessiva. Os aluguéis pareciam cada vez mais caros. Eu bebia e fumava muito. Isso parecia afastar os pensamentos. E eu havia me convencido que a origem de todos os acontecimentos era interna. Se eu não pensasse, não aconteceria. Os vultos eu ignorava. Eram frutos da imaginação. Convencia-me. Fui dormir receoso. Talvez tivesse que mudar de cidade novamente. Sussurraram em meu ouvido. Mas não acordei. Nem entendi o que disseram. Senti que me seguravam. Era um sonho horrível. Sentia-me impotente, desprotegido e frágil. Rasgaram-me a barriga. Era gelado e pontiagudo. Foi tão profundo que acho que se não estivesse virado para cima teria derramado meu interior na cama e no chão. (Alucinação Tátil) Soltaram-me. Acordei e quase desmaiei de dor. Minha barriga estava aberta. Gritei. Ouvi risadas. Mas só acho, pois gritava mais alto que qualquer coisa."

Disseram que havia se cortado em um surto. Mas o objeto mais cortante em seu quarto era uma colher de sobremesa. Entretanto, qual credibilidade dariam a um louco?

O ar estava pesado e não sabia se queria chegar a casa. Tinha medo do que encontraria. 19 anos. Exatos 19 anos. Seria um número cabalístico? Uma piada divina? Quiçá profana?

Poucas pessoas nas ruas. Já via a porta de casa. Ao chegar perto, não se sobressaltou. Mas ouviu um grito, estarrecedor, agoniante, agudo e pontuado. Causado por algo longilíneo e grande como um armário, supôs, já que podia ouvir uma respiração alta como uma locomotiva. Colocou a mão na maçaneta. Estava cansado.

Isso não era vida. Estava apenas respirando. Não vivendo.

Conformou-se. Sua vida não era normal. Nunca foi. Nunca será. Não queria viver se fosse assim.

Olhou pra trás. As poucas pessoas na rua continuavam a caminhar. Não ouviam nada.

Olhou para baixo. Olhou para as mãos. Tremia muito. Seria o fim? Um sorriso nervoso. De canto de boca.

Girou a maçaneta.

Entrou em casa.

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