Primeiro Entendimento
Eu nem lembro
quando começou... Não lembro o que sou.
Um erro
grotesco do divino ou um acerto jocoso do diabo. Sei que sou assim. Ganho minha
vida como posso e... De verdade? Faço uma ótima grana com isso. Não
há
orgulho. Não há satisfação na morte, mas também
não
há
remorso. Há um serviço demandado. Há um serviço
sempre cumprido.
Atualmente
moro na cidade grande. São Paulo. Perto da Avenida São
João no centro mesmo. Disseram que era melhor não
chamar muita atenção, mesmo ganhando uma grana monstra, e eu acatei... Afinal,
quem me paga é que manda. Eu até gosto da paisagem urbana. Gosto de não
ter medo em uma cidade que é movida por ele. Gosto do cheiro de
sujeira e até da falta de silêncio na madrugada. Ela tá
viva. Tá pulsante. Tá com as veias todas cheias de gordura...
Mas tá aí... Fazendo o que pode! São
Paulo... Eu curto São Paulo.
Eu ando de
noite e às vezes quase torço pra me abordarem. Eu curto o olhar de
terror. De surpresa. De medo. Eu não ligo tanto. Ninguém
vai acreditar se contarem mesmo. Enfim... Deixa eu começar a contar.
Eu tenho
atendimento psicológico toda quarta as três
da matina. É... Esse horário mesmo. Nada a ver com a negação
da santíssima trindade nem essas bostas, acho que é
só
logística mesmo. Os big boss arranjam um prédio abandonado,
que tem pra caralho aqui em SP, me avisam, me buscam etc... Tudo certinho! Toda
quarta! Acho que eles têm medo deu me virar contra eles. Deviam
ter medo mesmo. Mas num vou fazer isso. Aí quem me paga?
O seu Javier é
meu psicólogo. Ele me aconselhou a escrever sobre como me sinto. Como
sinto pouca coisa acho que vou relatar o que faço e vivencio. Talvez seja interessante
no futuro, se alguém achar isso aqui, né.
Às
vezes dá vontade de aparecer na TV, num programa ao vivo, num criança
esperança e BOOM! Sentir o temor em rede nacional... Se pá
mundial. Mas aí acaba tudo... Por uns 15 segundos de satisfação.
Foda-se fama. Não ligo pra isso. Pois é... Eu disse que não
há
satisfação na morte! Só na morte! Eu curto ser assim. Curto
fazer as paradas que faço.
Eu tenho um código
no dorso da mão esquerda. É U01101987. Como parece uma data assumi
que é meu aniversário. A letra eu não sei de onde
veio. Mas eu uso como nome. Quando perguntam às vezes, na rua mesmo, eu falo que é
Uriel o nome. Eu curto. Anjo da morte e pá. Curto simbolismo. Mas sei lá.
Não
ligo muito não.
O Javier me
disse pra escrever um blog ou alguma merda assim. Não dava pra dar
trela em algum lugar onde nego ia achar então tentei escrever umas paradas na deep
web. Mas achei muito zoado aquilo lá e resolvi escrever aqui mesmo. Só
pra mim e pra quem achar algum dia.
Então...
Eu tenho umas noções muito escassas acerca do período que eu vou chamar de Primeiro
Entendimento. Eu tenho uns flashes porque eu era muito moleque e porque os
caras eram muito escrotos. Tinha choque, tinha surra e já rolou até
de me jogarem com uns bichos grandes num quarto fechado. Ninguém
encosta mais em mim. Só se eu quiser. Eu me dividia entre a
barbárie e os livros que eu podia ler no meu quarto. Tinha muito
livro! Daí rola a dicotomia deu parecer um filha da puta favelado, falar
como um, mas conseguir discutir com qualquer pau no cu que tenha um doutorado
enfiado no rabo... Eu sabia que havia outros moleques também,
eu sei que eu vi uma guria sendo arrastada quando eu tava apanhando dentro duma
sala de vidro. E também já vi umas manchas de sangue mal limpas
nos lugares que me levavam lá... Sei lá onde era. Enfim... Eu peguei umas
palavras soltas da minha cabeça dessa época e taquei na internet. Quem tiver
lendo isso aqui se prepara... Seu mundo vai acabar, mano.
Ta ligado
projeto Montauk? MK Ultra? Stargate? E se eu te falar que é
tudo verdade e parte de uma coisa só? Que não é coisa de uma nação só?
Mas quer a real? Não to aqui pra falar disso... sou fruto
disso! Não sei como, não sei o porquê, não
sei origem, não sei porra nenhuma! Só sei que hoje eu consigo controlar e sou
a mão mais influente nesse jogo de pôquer que ninguém vê
que ta rolando. Não conheço ninguém aqui no Brasil e nem sei se essa
parada ta ativa em outros países. Mas quando eu cansar disso aqui vou
procurar. Assim... Por diversão. Porque eu nem ligo muito. De qualquer
maneira, é importante você saber dessas coisas pra não
achar que isso aqui é um conto de um bosta punheteiro. Junta
os pontos.
No Primeiro
Entendimento eu não sabia pra onde tava indo. Eu ficava puto, eu ficava com
medo, eu ficava no cagaço e as coisas aconteciam. Apagava por um
tempo e a parada acontecia. Quando eu acordava já tava na maca indo pro quarto. Com o
passar dos anos (acho que eram anos, eu não tinha noção... Era tudo muito igual todo dia. Mas
foram muitos dias... Então acho que foram anos.) esse tempo que
eu ficava apagado era cada vez menor.
Teve uma vez
que quase mordi minha língua toda fora porque os choques eram
cada vez mais fortes e eu não apagava. Quando eu apaguei não
foi completamente. Lembro do barulho do ferro dobrando, de carne torando e de
osso quebrando. Lembro do cheiro de sangue, lembro da minha cara molhada com
uma parada quente e lembro de silêncio. Quando voltei eu não
tava caído no chão, eu tava ajoelhado. Passei a mão
na cara e tava cheia de sangue. Como não tava sentindo nenhuma dor, tirando a língua
que eu tava mordendo, tentei entender o que aconteceu ao mesmo tempo em que
minha visão se acostumava com a escuridão de uma sala recém-destruída
iluminada por 2 lâmpadas vacilantes. Olhei pra frente; a maca de ferro onde eu
tava dobrada igual um pano de chão. Olhei pra esquerda; tênis
brancos encharcados de vermelho e pouco depois um par de pernas em calças
azuis. Olhei pra direita; uma cabeça me olhava de volta. Sem nenhum sinal
de raiva, temor ou horror. Só olhava de volta. Sem reação.
Minha visão
tava bem acostumada quando eu consegui ver o sangue que pintava a parede de uma
maneira estranhamente bonita. Eu não sabia ainda, mas chamavam aquilo de
expressionismo abstrato. Eu curti. Então... Eu tinha rasgado a mulher que me
dava choque, espalhado os órgãos internos dela pra todo lado,
retorcido uma maca de aço maciço. Tinha feito tudo isso sem encostar um
dedo nela. Mas o que mais me chamava a atenção era aquele vermelho na parede ao
melhor estilo Pollock, segundo o que li depois em livros de história
da arte. Me senti um puta artista. Talvez tenha sido o mais perto de sorrir que
cheguei.
Depois de
alguns anos eu não apagava mais. Passei a ficar muito mais tempo no quarto do
que em experimentos. Até que um dia eu resolvi amassar a porta e
sair pela porta da frente. Acho que todo mundo viu. Tocou um barulho alto
quando eu passei por uma porta, mas poucos segundos depois ele parou. Ninguém
fez nada.
Eu andei um
bom tempo. Talvez uma outra hora eu conte tudo que se passou da minha saída
até os meus antigos “donos” estabelecerem uma relação
empregatícia comigo. Nesse meio tempo eu já estava no que
chamo de Segundo Entendimento. É tipo o velho e o novo testamento, saca?
Mas sei lá... Vai que rola um terceiro. Não sei. Não ligo muito.
Sei que eu
passei muita coisa e entendi melhor como o mundo funciona. Eu tava atrasado pra
caralho! Eu não sabia muita coisa. Conhecimento é poder. Acho
que eles sabem disso. Por isso preferiram me ter como sócio.
Tem uns
trabalhos menores que eu não faço ideia do porquê eles são
pedidos, nem ligo. Matar uns pé rapados, pegar umas pastas, sei lá!
Deve ter uma razão, mas não me importa. Agora os trabalhos que
pagam bem, esses devem demandar um trabalho sinistro de engenharia social. Mas
foda-se! Nesses eu ganho uma grana que daria pra comprar uma cobertura duplex
em Moema. Só que não vou dar na telha, né.
O primeiro
trabalho grande que fiz já tem uns três anos. Foi em
agosto e os big boss disseram que iam “deixar o clima em condições
ideais para que eu pudesse agir”. Depois de um tempo eu fui ler sobre as
máquinas
HAARP e fez sentido. Mas não ligo, quero só a grana
mesmo. Rola uma preparação. Uma concentração. Parece
controverso, mas meditação me ajuda bastante. Sinto que otimiza
o que faço. O cronograma é o seguinte. Me dão a situação,
o objetivo e a rota do alvo. Eles cuidam do planejamento e do controle pós-evento.
Eu lido com a direção e a organização da parada.
Nesse caso em particular eles me pagaram uma passagem pra Santos e me deram
umas coordenadas no celular mesmo. Subi num ponto que me desse o mínimo
de visibilidade e me concedi o direito de apreciar a sensação
que era a de estar prestes a pintar um novo quadro. Enfim, é
só
isso que preciso. Concentração e o mínimo de visibilidade. Às
vezes acho que nem preciso de visibilidade, não sei. Depois vou testar. Eu gosto de
mirar, como um sniper. Mas também acho que é desnecessário.
Só
um pouco de pose. Uma mania de artista.
O tempo começou
a fechar e pra mim foi o sinal de que era hora. Era uma quarta feira e ainda
estava de manhã... Acho que umas nove ou dez horas. Quando eu vi o avião
dei aquela concentrada, levantei as mãos e visualizei, como sempre faço,
meu objetivo. Daí comecei a pintar o quadro na minha cabeça.
Minhas mãos fazem um movimento rápido pra baixo e, como se eu estivesse
jogando no kinect, o avião começa a descer. Eu vacilei! Joguei o avião
em cima de umas casas. Devia ter jogado pra fora, sei lá. Mas nem ligo
não.
Fiquei pensando se iam diminuir o pagamento, mas ele tava todo lá
na conta. Bem certinho. Mais tarde eu descobri que meu alvo era um candidato à
presidência. Lembro que ouvi a notícia dentro duma hamburgueria artesanal e
tava bem de cara com o fato de nunca ter comido esses hambúrgueres
antes. Fiquei pensando se devia ter pedido mais grana. Porque porra... Era um
candidato à presidência. Mas nem precisava de mais grana.
Na real? Eu acho que nessa época eu já era um dos caras mais ricos do Brasil.
Mas foda-se.
Os trabalhos
grandes aparecem pouco, mas os pequenos não pagam mal. O último trabalho
grande que tive foi o que me pagou mais. Eu acho, de verdade, que eu consigo
comprar um país pequeno com o que eu recebi só nesse trabalho. Depois eu entendi o
porquê! Esse foi por agora. Em janeiro. Mesmo modus operandi.
Pagaram a passagem, me deram localização, objetivo e rota do alvo. Esse foi até
mais fácil porque tava perto da água. Lembrei só na hora de não
jogar em um lugar cheio de gente. Só porque acho que ia ser mais difícil
de encobrir, sei lá. Descobri depois que esse alvo era um
juiz que tava pra pegar uma galera, algo assim. Não me entenda mal. Eu sou bem curioso
acerca de tudo. Mas eu gosto de manter uma certa distância dos
alvos. Pode chamar de profissionalismo.
Acho que o
Javier tava certo. Esse negócio de escrever me faz entender as
coisas um pouco melhor. É como a meditação, mas tem
palavras. Vou conversar com ele quarta que vem. Começo a questionar
se realmente não ligo para as coisas. Mas acho que gosto de fazer o que faço
mais do que pensava. Bem, acho que foi Confúcio que falou uma parada acerca
encontrar um trabalho que ama, né? Daí você não vai trabalhar nenhum dia, algo assim.
Não
sei. Não sei se amo. Mas eu curto pintar esses quadros. Na quarta vou
contar pro Javier essas coisas. Talvez seja o começo do Terceiro
Entendimento... Ou não.
Enfim...To com
fome. Vou comer um hambúrguer e vou dormir.
Comentários
Postar um comentário