Crack in the Sky



“Eu me lembro da primeira vez que olhei dentro de um anel. Na mensagem do Whatsapp estava escrito bem assim: ‘O Junior disse que dá pra ver lá da casa dele. Ele tem um telescópio de 60 mm.’ Escrito como se alguém soubesse a importância de ser de 60 milímetros ou não.

Ok.

Vamos à casa do Junior.

Sabe... Quando passou no plantão da globo a primeira vez já deu medo. Todo mundo sabe que se passou lá só pode ser sério. Ninguém falava de outra coisa. Os anéis que surgiram no céu eram o assunto do momento. Mais que Stranger Things, mais que a última temporada de Game of Thrones, mais que vídeos de gatos tocando teclado (isso é famoso ainda?) e mais que The Walking Dead (acho que esse último nem é tão falado mais, não sei. Não sou tão ligado nisso.)

Cada um tinha sua própria interpretação do que eram os anéis. De verdade? Acho um nome bem idiota! Mas todo mundo chama assim. O Rafael chama de cus do céu. Eu finjo que é babaca, mas por dentro dou risada. Cus do céu é ótimo. Bom nome.

Então... Quando surgiu o assunto dos anéis a primeira vez todo mundo ficou especulando. Mas não parecia nada de extraordinário. Talvez algum fenômeno meteorológico ou algo parecido. Parecia um anel feito de nuvens. Uma circunferência perfeita, inabalável e impassível. Talvez fosse uma forma embrionária. Eram vários e de vários tamanhos e só. Sem novidade alguma por exatos 7 dias.

Daí veio o primeiro plantão da globo. Talvez esse tenha sido o evento de comoção global mais abrangente que já existiu. Estava pensando nisso outro dia. O Léo disse que era a copa do mundo e eu até concordei por um segundo. Depois voltei atrás. Eu mesmo não gostava de futebol. Copas não me comoviam. Mas com os anéis não tinha essa de gostar ou não. Eles estavam ali pra quem tivesse olhos que enxergassem e pescoços que inclinassem para trás possibilitando uma visão clara do céu. Acho que a parcela da população mundial que se enquadra nesses requisitos é maior que a parcela que gosta de futebol.

Enfim... Na TV estavam dizendo que era possível ver o outro lado dos anéis. Alguns eram bem grandes e eu realmente não sei se conseguia enxergar algo. Parecia tudo muito borrado. Mas com toda a certeza não eram halos gasosos ou círculos de nuvem como outrora pensei. Havia algo no meio dos anéis no céu. Lembro que religiosos ficaram em polvorosa e dizeres apocalípticos viraram trending topics no twitter num misto macabro de memes e pessoas verdadeiramente assustadas. Tudo isso durou mais 7 dias.

Quando veio o segundo plantão houve uma dicotomia emocional. Uma mistura de excitação científica por parte de uma galera mais racional (que andava sumida diante da irracionalidade dos acontecimentos) junto com os mesmos arautos do capeta que bradavam o fim do mundo em coro uníssono. Nos anéis maiores eu realmente consegui ver algumas coisas. Uma graminha, um oceano talvez, umas casinhas.

Na TV disseram que cada anel mostrava exatamente o que estava acontecendo em outra parte do mundo. Exatamente! Alguns amigos da Universidade não conseguiam conter a adrenalina em posts de facebook e afins. Pipocavam teorias acerca de buracos de minhoca e similares. Foi bem legal! Confesso. Eu tenho agonia de voos longos. Quando apresentaram a possibilidade de uma viagem de 20 horas passar a ter menos da metade porque iriam cortar caminho por um anel assim que mapeassem todos eu realmente fiquei feliz!

Se eu que sou totalmente ignorante na arte das manjadas saquei que o ciclo de ação desses anéis é de 7 em 7 dias, com certeza isso já havia sido percebido pelo alto escalão que estava pesquisando os anéis.

Pois bem. De 7 em 7 dias parecia que a nitidez dentro dos anéis aumentava. Começou como um borrão e em 49 dias veio o terceiro plantão na TV. Basicamente alertando para o fato de que os anéis pareciam telas 4k de setenta bilhões de polegadas suspensas por mágica. No meio desse tempo fomos à casa do Júnior pra olhar para os anéis por um telescópio. Era sinistro! Você olhava pra cima, mas parecia que estava olhando pra baixo. Vimos pessoas, casas, florestas, oceanos, montanhas. Tudo! Perfeitamente! Era incrível à noite também, porque os anéis dos locais no mundo onde era dia iluminavam completamente a noite desse lado do mundo! Mas não chegava a parecer dia. Só iluminava muito bem. Um espetáculo visual!  Fiquei viajando pensando que se todo mundo tivesse telescópios seria fácil se comunicar em tempo real, daí lembrei que tem a internet.

De qualquer maneira... Acho que era para ter acontecido um quarto plantão na TV. No sexagésimo quarto dia. Mas nem rolou. Aqui desse lado do mundo estava de noite e, parafraseando o meu amigo Márcio, parece que a terra rachou no meio. Eu nunca ouvi um barulho tão alto. Já faz 6 dias e eu ainda não escuto nada do lado esquerdo. Acredito ter perdido a audição de maneira permanente. Doeu muito e sangrou. Todos os vidros de casa quebraram. A tela das TV’s também. Os vidros dos carros também. Celular, notebook, tudo. Fiquei sabendo que uns 8 cachorros na rua morreram depois. Ta todo mundo bem assustado. Ainda tem luz, mas está bem fraca. Internet não tem mais, nem telefone. A gente tentou ir ao shopping lá na capital, mas a BR tava bloqueada hoje. A mãe do Júnior trabalha na esplanada e disse que liberaram todo mundo no dia depois do barulhão. Ninguém tem contato com ninguém. Nem telefone, nem internet em lugar nenhum lá.

Depois do barulho vários anéis ficaram negros. Não negros como a noite. Sei lá... Nem como a noite mais escura que já vi. Não sei explicar. Tentei tirar uma foto, mas não funciona. O Rafael disse que jura que viu um pássaro voando perto de um anel que ficou negro e foi chupado pra dentro. Achei que ele tava viajando, mas faz sentido. Porque desde ontem todas as nuvens tão meio que em espiral. Como se os anéis fossem ralos de uma pia e as nuvens a água caindo pra dentro do ralo. Nos anéis que não estão negros tem um monte de coisa. Em muitos tem uma galera junta como se fosse uma manifestação. O Junior disse que olhou pelo telescópio um anel e tinha muita gente com placas com KONIEC SWIATA bem grande nelas. Ele anotou pra procurar quando a internet voltar.

Faltam uns 2 minutos pra chegar o próximo sétimo dia.

Vou só comer e volto a escrever aqui. Eu não como já faz uns...”


Fim.

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